LITERATURA NEGRA FEMININA, por Layla de Oliveira Vasconcellos
- alemackoficial
- 2 de dez. de 2020
- 6 min de leitura

Durante muitos anos, a voz das mulheres foi silenciada e relegada ao esquecimento no âmbito literário. Podemos dizer que a literatura contemporânea é a grande responsável por abrir espaços para que a voz das escritoras possa ser ouvida. Na literatura contemporânea, tanto na prosa quanto na poesia, há certa consolidação da autoria feminina e debates profícuos acerca das identidades – nacionais, regionais e, acima de tudo, pessoais. Dentro do campo da autoria feminina, notamos diversas vertentes, dentre elas: a literatura negra.
A literatura negra feminina dá visibilidade à escrita das próprias mulheres negras. Em épocas passadas, quando existiam personagens negras nos textos literários, elas eram frequentemente representadas de maneira estereotipada, por meio de discursos masculinos e eurocêntricos. Hoje em dia, a literatura negra feminina desconstrói, reconstrói e ressignifica os papéis sociais atribuídos historicamente às mulheres negras, que falam por elas mesmas e criam suas próprias histórias.
Nas histórias criadas pelas mulheres negras, conseguimos apreender críticas ao patriarcado, aos mecanismos de opressão que subalternizam e marginalizam as mulheres negras, ao sexismo, ao racismo, ao classismo. A literatura negra feminina pode ser um instrumento pertinente para discutirmos questões de gênero, raça e classe social, já que várias obras desse subgênero literário se apoiam em reflexões apresentadas pelos feminismos negros.
Para as mulheres negras, o ato de escrever já é uma forma de luta, reinvindicação e resistência. A partir do processo de escrita, as mulheres negras empoderam-se e despertam novos olhares sobre elas mesmas, suas vivências, suas culturas, suas histórias, suas raízes ancestrais africanas. A literatura negra feminina aborda diferentes temas de maneira engajada, social e politicamente, buscando a valorização da negritude em todas as esferas do cotidiano e a retomada da integridade das mulheres negras.
Dentro da literatura negra feminina, observamos variadas tendências ligadas ao país e ao contexto histórico em que as produções literárias são desenvolvidas, uma vez que a consciência de ser mulher negra é plural. No Brasil, podemos citar as obras de: Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Jarid Arraes. Quanto ao continente africano, Paulina Chiziane, Chimamanda Ngozi Adichie, Ana Paula Tavares são alguns nomes que se destacam. Nos EUA, as obras de Alice Walker e Toni Morrison são importantes para a formação do cânone literário afro-americano feminino – ainda emergente.
Toni Morrison, uma voz poderosa da literatura negra feminina nos EUA
Chloe Anthony Wofford, conhecida como Toni Morrison, nasceu em 18 de fevereiro de 1931, em Lorain, Ohio. Quando criança, Morrison viveu em um ambiente culturalmente rico, onde adultos compartilhavam suas heranças africanas e tradições afro-americanas com gerações mais novas, sobretudo, por meio da arte de contar histórias. As memórias dos primeiros anos da autora, as experiências vividas pelos negros no decorrer do tempo e diferentes momentos da história norte-americana influenciaram-na, intelectual e politicamente, sendo, anos depois, relevantes para o processo criativo de sua obra.
Em 1953, Morrison graduou-se em Língua Inglesa e especializou-se em Clássicos pela Howard University. Em 1955, a autora defendeu sua dissertação de Mestrado em Língua Inglesa na Cornell University. Um dos momentos que dividiram sua vida profissional aconteceu quando Morrison se tornou a primeira Editora Sênior negra no Departamento de Ficção da Random House, uma das mais prestigiadas editoras em língua inglesa ao redor do mundo. Ocupando esse cargo, a autora exerceu papel fundamental na divulgação da literatura negra nos EUA, publicando trabalhos de escritores às margens da sociedade norte-americana daquela época, cujas obras não geravam lucros altos para as editoras.
A partir do fim da década de 1960, Morrison dedicou-se à escrita de sua obra, que foi traduzida para mais de 25 idiomas. A obra da autora é composta de artigos, contos, um libreto de ópera, literatura infantil em parceria com seu filho Slade Morrison, peças de teatro, prefácios de livros, 11 romances (ficção) e textos de não ficção. Decerto, história, identidade e questões raciais são os três alicerces principais da sua produção literária.
No dia 7 de outubro de 1993, Morrison recebeu a notícia de que havia sido laureada com o Nobel Prize in Literature, tornando-se, assim, a primeira autora negra a ganhar a condecoração mais distinta da Academia Sueca. Esse momento foi excepcionalmente significativo não só para a literatura dos EUA, mas também para o Nobel Prize, visto que a maioria dos vencedores, até aquele ano, era masculina.
O período subsequente ao Nobel Prize in Literature de Morrison foi marcado por turnês internacionais para a divulgação de seus livros mais recentes, leituras públicas de sua obra, aparições na mídia e conferências da Toni Morrison Society. No fim do século XX e início do século XXI, a autora ganhou outras honras e homenagens em eventos norte-americanos e estrangeiros, por exemplo: o título de Professora Emérita da Princeton University (2006) e a Presidential Medal of Freedom (2012), o prêmio civil mais notável dos EUA, que Morrison recebeu do presidente Barack Obama.
Toni Morrison faleceu em 5 de agosto de 2019, aos 88 anos, em Nova York, após complicações no tratamento contra pneumonia.
O olho mais azul, o romance de estreia de Toni Morrison
Em 1963, enquanto ainda dava aulas na Howard University, Toni Morrison juntou-se a um grupo de escritores e começou a trabalhar em um conto que, anos mais tarde, seria a base de O olho mais azul, lançado em 1970.
O primeiro romance de Morrison foi rejeitado por várias editoras e publicado originalmente em uma tiragem pequena. Somente no ano 2000, quando O olho mais azul foi indicado para o Oprah's Book Club, as vendas do livro aumentaram e ele entrou nas listas de livros mais vendidos, tornando-se um best-seller nos EUA e no mundo inteiro.
A inspiração para a escrita de O olho mais azul foi uma conversa entre a autora e uma amiga de infância com 11 anos de idade, a cor da pele muito escura e muito bonita. Durante uma caminhada, Morrison e sua amiga discutiam a existência de Deus. Então, a amiga da autora disse que Deus não existia e que tinha como provar seu pensamento, pois ela estava orando há 2 anos, clamando por olhos azuis, e Deus nunca atendeu à sua súplica. Diante desse desabafo, Morrison ficou estarrecida e esse episódio motivou-a a tratar do racismo internalizado pelas meninas negras em seu romance de estreia.
Grande parte das ações em O olho mais azul desenrola-se ao longo das 4 estações (outono, inverno, primavera, verão – nessa ordem), entre os anos 1940 e 1941, em Lorain, Ohio. O enredo revela-nos a história de vida de Pecola Breedlove, uma menina negra com 11 anos de idade, pobre e muito feia. A feiura de Pecola faz com que ela seja ignorada e desprezada em todos os âmbitos da sociedade norte-americana, em consequência de sua cor da pele muito escura e seu cabelo muito crespo. Assim sendo, o sonho de Pecola é ter o padrão de beleza difundido pelo cinema de Hollywood no período da Grande Depressão (1929-1939). Portanto, “[...] toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse” (MORRISON, 2019, p. 50).
Pensando em como ganhar visibilidade e deixar de ser rejeitada e excluída pelas pessoas ao seu redor, inclusive pelos seus pais, “[...] tinha ocorrido a Pecola, havia algum tempo, que, se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente. [...] Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também” (MORRISON, 2019, p. 49-50). Com o padrão de beleza das atrizes do cinema de Hollywood, Pecola acreditaria que seu lugar no mundo poderia ser o mesmo lugar dos brancos, ou seja, ela também estaria no topo da hierarquia social.
Em O olho mais azul, Toni Morrison retrata as sérias consequências da busca por padrões de beleza idealizados, inalcançáveis e injustos. Além disso, Morrison tece fortes críticas à supremacia branca nos EUA e à opressora sociedade norte-americana, que é hostil e marginaliza os negros e outros grupos sociais que não têm o padrão de beleza hollywoodiano. Recuperando o mundo literário de O olho mais azul e trazendo questões problematizadas nesse romance para a realidade do século XXI, podemos reiterar o seguinte questionamento: afinal, o que significa ser bonito e ser feio em um país como os EUA?
Em 2020, O olho mais azul completa 50 anos, porém seus temas não estão ultrapassados. O olho mais azul é uma leitura atual e urgente!
Referência:
MORRISON, Toni. O olho mais azul. Tradução: Manoel Paulo Ferreira. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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